terça-feira, 16 de março de 2010

Memórias

A menina pequena descia a serra e ficava olhando estas matas: de baixo para cima não se via nada, só floresta, montanha. Como é que estas matas poderiam esconder uma cidade tão grande? Lá encima, aquela imensidão armada em cimento e concreto, aqui, tudo permanecia tal qual o dia que os jesuítas chegaram: nada mais que floresta, areia, mangue, serra e mar. Se via algumas vilas, estradas de terra cortando aquele verde todo e também fortes lembrando caçadores de baleia. Dos índios sobravam os nomes dos rios, praias, plantas e animais.

A menina pequena olhava a praia vazia com as montanhas atrás e soletrava os nomes. De repente, na praia calma de nome indígena, eles apareciam, remando, abraçando os dois lados da baía - espíritos! Lá iam eles, veloz e silenciosamente, eram dez, talvez quinze canoas. Só o som de vozes e risas cortava o barulho da mata. Aqui no inverno, enquanto fazia frio serra acima, a temperatura era generosa como o mar que trazia às costas milhares de tainhas para serem pescadas e comidas, ou secas e conservadas para tempos piores. Aqui acampavam de passagem nas praias desertas, se adentravam nos mangues para caçar caranguejos. E a menina na praia solitária acariciava os grãos de areia, amava aquele mar verde e fecundo e aquelas florestas cheias de árvores, cada uma com o seu tempo para florescer - se no norte, mais frio, e nas montanhas, mais áridas, as flores se achavam no chão, aqui elas moravam nas árvores - roxas, brancas e amarelas, elas pintavam a mata de cores em épocas diferentes. A menina tocava a areia, as rochas, os troncos ásperos das árvores, queria beber a beleza do mar.

Cada ano vinha, mesmo que fosse por um dia, tinha que descer a serra para ver o verde ao lado do mar. Cada ano descia, cada ano era como se cortassem um pedaço seu com cada pedaço de mata que tinha dado lugar a casas de veraneio e hotéis deixando pelados os morros queimando ao sol. Já não podia imaginar os índios cruzando as baías, agora a grande metrópole, lá em cima, fazia sentir sua presença aqui em baixo. A menina cresceu.

A lembrança de um lugar não é só de uma pessoa, mas de muitas. É também dos milhares e milhões que descem a serra para veranear e, para muitos, os morros pelados sempre fizeram parte da paisagem, como os bares, as festas e as lembranças de amores de verão. Assim tinha que ser: uma grande metrópole necessita de seu pólo turístico. Agora para cá, a cada verão, se mudava a cidade, o estado inteiro, todos aqueles que não tinham mar. A cidade fechava – quase – e todos desciam para desfrutar de suas férias. As imagens de índios e jesuítas ficaram mais remotas, meras quimeras esfumaçando-se no ar e as praias adquiriam novas cores – as das areias manchadas pelo esgoto e pelo piche. As matas se distanciavam, os mangues trocados por favelas, nordestinos contratados para construir estradas e casas aqui ficavam para trabalhar como caseiros, jardineiros, seguranças ou domésticas. Entre mar, areia e montanha agora cortavam o contínuo natural boutiques e restaurantes exclusivos, mansões, ruas, e até favelas. Mas a menina entendeu que de alguma maneira estava certo. A privilegiada – a única com direito de apreciar aquele mundo? O país mudava, a classe média expandia, todos tinham o direito de vir a praia, banharem-se ao mar. Do interior do Mato Grosso, agora plantado com soja, onde iriam passar o verão, se não nestas praias adaptadas para seu conforto e diversão?