sábado, 26 de março de 2011

Palavras

Palavras tuas acariciando-me em tua língua, complementadas por palavras minhas, indo ao teu encontro, mas em minha língua. Essa língua em sua voz, doce acento que jamais poderia imitar, jamais natural em mim. Te invejo. Te invejo mesmo sabendo que sou capaz de fazer o mesmo contigo. Não consigo ver o efeito que tenho, que tem minha voz, minhas palavras, exceto através daquilo que consegues fazer comigo. Me exaltando, me excitando só com tuas palavras, os sons que saem de tua boca. As formas, conjuntos que rapidamente respondo para continuar nosso jogo são às vezes tão similares... Unísonos nos separando na maneira de pronunciar uma letra, uma sílaba final. Mas às vezes as mesmas coisas não cabem nas mesmas formas, e então te respondo com as mesmas palavras trocadas. Assim vamos nos alcançando, de longe, de perto, nos batendo um contra o outro, se encaixando, sem se encaixar direito. Tão próximos em nossas diferenças que às vezes... e às vezes com medo de malentender. Mas estas palavras simples que descrevem nossos atos, premeditadamente pensadas para impactar-te, para impactar-me, não podem nos enganar. Não no auge daquilo que fazemos. Talvez seja irreal depois, antes ou depois. Mas agora? Agora suas verdades não podem ser contestadas, em tua língua, em minha língua. Me solto, me entrego, me deixo gozar, através delas, com elas, silêncio.
Depois, quem sabe? Uma pequena suspeita de que teu amor ficará sempre trancado dentro de minha língua, das palavras que pronuncio, em suas formas, em sua ordem. Amor que só se faz real enquanto sou aquele que profere aquelas palavras, de uma maneira que jamais poderás.

1 X 0

Fiquei surpresa quando me disse que lia muito. Lia muito no trem, no ônibus, olhei de novo, meu infalível preconceito se assentou e eu nem me lembrei da tatuadora. O preconceito se assentou e de um só olhar e com algumas palavras já achava que sabia tudo. O estado, a classe, onde morava e o que fazia. Lendo, no ônibus, no trem, lia tanto que aqui estava, no hospital, esperando a operação e achava que era a leitura a culpada pelo estado de seus olhos. Só podia ser lendo a bíblia, me disse meu preconceito. Porém, mesmo sem me lembrar da mãe da motorista de ônibus, reagi, hesitei: "espera aí, talvez..." Estiquei meu braço para frente e tentei apalpar algo do outro lado da névoa que me cobria, nada. Conversa vai, conversa vem, descobri que ela era goiana e estava vivendo em Harlsden há cinco anos e trabalhava de... Tive que admitir, desta vez, perdi: um ponto para o preconceito.

desconexos

O cubano é louco - ou talvez não seja -
São os outros que não acreditam
Que o negro, apreciador de cocaína,
Possa ser um professional viajado.

Teu lugar

Se pudesse controlar o futuro,
Ser dona de minha própria memória e
Desembaraçar o efeito dos anos,
Não terias espaço nos arquivos
Repletos de cada momento querido,
Cada momento passado,
Com amantes, com amigos,
Nos ficheiros ordenados de minha mente.

Mas na pilha de coisas a descartar
Deixar-te tampouco conseguiria.
Reservar-te-ia um espaço no meu subconsciente,
Naquela caixa esquecida, em algum lugar, perdida
Cheia de retalhos, peças desconexas de vida,
Surpresas nem grandes, nem muito agradáveis,
Pequenos momentos de cor.
Aí te guardaria.

Primavera

As portas do café se abriram, entrou o sol,
e com ele os tipos que se encontram pelas ruas de Hackney
antes detidos pelas portas ilusoriamente trancadas.