terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Cada paralelepípedo...

...Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída,
Sem perceber que era subtraída,
Em tenebrosas transações,
Seus filhos...
Erravam cegos pelo continente,
Levavam pedras feito penitentes,
Erguendo estranhas catedrais.
...E um dia afinal,
Tinham direito a uma alegria fugaz,
Uma ofegante epidemia,
Que se chamava....

(Chico Buarque)



Se esta canção foi escrita para e sobre o nosso carnaval, ela também reflete a história de todo nosso continente americano. Em especial, daqueles lugares onde a população foi subjugada e forçada a trabalhar como escravos, fossem eles índios nativos ou africanos trazidos do além-mar, em plantações ou minas de onde os portugueses e espanhóis esperavam extrair seus próprios El Dorados em prata, ouro ou açúcar.

Se o carnaval, que é também celebrado em outros países católicos europeus, ganhou especial força em nossa América, foi justamente pela importância daqueles poucos dias de “liberdade”, como diz Chico, em que o escravo não só podia parar de trabalhar, mas também praticar suas crenças não-cristãs.

O Carnaval de Oruro não foge às regras. A forma é a mesma que a do nosso carnaval. São grêmios ou congregações que passam o ano ensaiando, fazendo fantasias, criando música para desfilarem nas passarelas nos dias de carnaval. Há várias alas com vários significados, só que em vez das baianas, há as cholitas, por exemplo. Os músicos, bem vestidos em terno e chapéu, à la antiga, elegantes, inspiram tanto respeito quanto os blocos das velhas-guardas das escolas de samba. Ao lado, correndo de um lado ao outro, estão os coordenadores e pessoal de apoio, sérios, também bem-vestidos, assegurando que tudo está indo bem, resolvendo os problemas. No passado, como no Rio, nos dias de carnaval, o povo descia o morro para fazer a festa na cidade criolla, civilizada.

O que muda são as especifidades regionais, culturais. O carnaval aqui, me parece, é todo relacionado à mineração, aos mineiros. Sua história, sua origem, sua santa padroeira, La Virgen del Socavón. A igreja da padroeira é cravada no morro, onde antes jazia uma antiga mina. Em volta, ainda se vê algo de mineração e também as casas mais humildes. Tudo neste carnaval nos remete à Virgem e tudo nela é mineiro. Os carros (literalmente), que abrem cada agremiação, levam a Virgem e são adornados com pratos e outros objetos de estanho. Outro personagem importante é “el Tío” ou o diablo (por tanto, as diabladas), venerado como aquele (antiga divindade) que foi subjugado e substituído pela Virgem (católica). Mas ao mesmo tempo, ele não foi vencido, porque continua sendo venerado pelos mineiros, sua imagem é encontrada em cada mina. Como também se oferece folhas de coca, a ele, à virgem e a não se sabe quem mais. Dentro da igreja, as folhas de coca são oferendadas com respeito e veneração - como se fazia antes com os antigos deuses incas e outros pré-colombianos.

O final da procissão leva à igreja ao pé do morro. Aonde a formalidade da festa citadina acaba e dá lugar a uma celebração mais solta, mais carnavalesca, no sentido etimológico da palavra. No largo da igreja, já em cima das escadarias, os músicos fazem suas últimas apresentações. E na segunda-feira, dia dedicado al Tío, uma passarela de panos tradicionais ornados com peças em estanho é montada para que os carnavalescos passem por dentro. Na frente da porta da igreja também é feito um arco com peças de estanho: pratos, colheres, copos, o que tiver. Nesse dia a celebração é ao contrário – os carnavalescos recebem a benção da virgem na igreja e de lá partem para a praça principal, já não há mais a rota do carnaval a ser seguida.

A igreja em si, que é toda ornada com motifs mineiros e imagens do diabo, tem duas faces. De um lado a igreja formal com seu altar e ao fundo, do lado oposto ao altar, cravada à face rochosa da montanha, está a virgem que, dizem, é a mais cara de toda a Bolívia por suas roupas ornadas em pedras preciosas e semi-preciosas. Aqui, estão as velas, aqui, as pessoas fazem suas homenagens com folhas de coca, aqui, há também figuras do diabo. E estranhamente, ao lado da Virgem, tem a entrada do Museu Mineiro. E tudo isso, é gerenciado pelos padres responsáveis pela igreja. Só posso imaginar, que como na Bahia, os padres temem purificar os rituais para torná-los simplesmente católicos. Preferem conviver com o paganismo, que ter que lidar com a sempre presente ameaça de pessoas como o sociólogo-político Félix Patzi que se declarou praticante de uma antiga religião pré-colombiana. A ameaça da não cristianização, parece, continua tão viva como a 400-500 anos atrás quando os índios eram utilizados para trabalhar nas primeiras minas pós-colombianas e forçados a crer numa religião que não era sua.


Largo da Igreja, Oruro, Carnaval

Transporte, morte e política


Transporte na Bolívia é coisa séria. No mês de janeiro morreram mais de 72 pessoas por acidentes de ônibus, desde lá já morreram mais outros. As mortes, nesto caso, envolveram o que, na Bolívia, se chama de Flotas, ou seja, os grandes ônibus inter-departamentais ou internacionais, portanto, aqueles que deveriam ser mais bem controlados, com os melhores motoristas.

Pois aqui, há uma variedade imensa de tipos de ônibus, transporte coletivo, cada um com seu nome e área de atuação - uma certa organização dentro da confusão geral. O que é certo é que, não importando o tipo de transporte, os passageiros estão sempre atentos. Talvez pela natureza aguerrida dos bolivianos do Altiplano, a falta de controle estatal ou simplesmente porque o medo - fundamentado em fatos reais - é tão grande que a ação direta se faz necessária. São eles quem controlam o que acontece, ou pelo menos, vociferam suas posições: “Motorista, ultrapassar assim não dá, não queremos morrer.” “Há uma lista de passageiros, por favor observe a lista, quem não veio, não vai”. “Só cabe vinte um, já tem vinte seis aqui dentro”. Não são atendidos ao todo, mas ajuda a controlar...um pouco.

Quanto àquela ideia do ônibus velhinho todo coloridinho, até agora só vi como transporte urbano que é conhecido por movilidad, que, fora os taxis, ainda não tive o prazer de experimentar. Para viagens inter-urbanas há as flotas que já havia mencionado e que, pelo seu estado, devem ter sido comprados usados do Brasil, Argentina ou qualquer outro lugar. Entre outros, há também os micros, ônibus mais pequenos, mais velhos ainda e um pouco mais lentos. O micro que peguei estava com o vidro quebrado que, com as chuvas que vêm alagando a Bolívia tanto como São Paulo, deixou os assentos todos molhados e mofados. A mistura de cheiro de mofo, sujeira e coca mascada fez brotar em mim todos os meus preconceitos e chiliques de classe média, que se manifestaram basicamente em três palavras causalmente relacionadas: sujeira, nojo e hipocondria. Me sentei rígida as cinco horas de viagem, sem mexer ou tocar em nada, e muito menos pôr minha mão perto de minha boca ou nariz. Daquele banco molhado, imaginava, entrando através da minha roupa, as pulgas, piolhos, bichos transmissores da doença de chagas (na região de Cochabamba um inacreditável número de 70% de mulheres grávidas são detectadas com a doença!) e outros insetos, micróbios e germes em geral. Cada tosse era uma tuberculose, e cada cuspe no chão do carro, um lago de bactérias. Não via a hora de chegar em Cochabamba, passar por uma farmácia, comprar uma daquelas loções anti-piolho e sarna, tomar banho, jogar todas as minhas roupas dentro de um saco plástico fechado, para serem lavados no hotel de luxo que iria ficar em La Paz depois desta experiência tão desagradável.

Não são conhecidos por sua higiene, os índios do Altiplano: roupas sujas, cuspes em qualquer lugar, restos de comida jogados no chão, onde os bebês e todos os outros dormem. Decidi pegar o micro em vez das modernas vans/taxis coletivos - primeira escolha de todos os passageiros a não ser aqueles que estão carregando imensa quantidade de coisas ou estranhos botijões de ferro - porque me disseram que eram mais lentos. Até então, meu medo de morrer num acidente era maior do que minha hipocondria. Depois, juntaram-se os dois. Apesar de ser mais lenta, a viagem não era mais segura. O motorista insistia em ultrapassar grandes filas de caminhões em curvas fechadas ou pontes, sem capacidade para aumentar a velocidade, enquanto os passageiros atrás xingavam alto por causa da falta de prudência. Isso, sem falar do botijão de ferro de sei-lá-o-quê, que estava no chão, ao lado dos meus pés. A cada ultrapassagem mal-calculada, imaginava uma batida contra algum veículo em que o botijão explodia em chamas como o avião da TAM que caiu em Congonhas. O consolo? As belas vistas da subida dos Andes que o micro realmente possibilitava.

A escolha do micro também foi marcada pela minha experiência de ida, numa van moderníssima, bem cuidada, mas cujo motorista se achava primo do Aírton Senna. Descia os 2,000m de altura e de curvas em uma velocidade tal que mais de duas vezes quase bateu, sem falar no episódio da derrapada em que uma quantidade de pó entrou no carro. Pensamos todos que era fumaça – até cheirarmos e constatarmos que realmente era pó. Eu rezava para chegar nos pedaços da estrada em más condições, porque só isso fazia o Aírton baixar a velocidade, e com as chuvas, a estrada estava cheia destes trechos e de desmoronamentos ou “dezumbes” como diz a população local.

Minha ida e volta à Copacabana, no Lago Titicaca, foi regida pela ameaça e subsequente efetivação de greves e bloqueios de estrada. A razão? Um sensato decreto do governo nacional reforçando a regulamentação e monitoramento dos motoristas e companhias de transporte. O tal decreto prevê que os donos de veículos dirigidos por pessoas bêbadas e que causarem acidentes, não poderão utilizar o veículo como meio de transporte por 1 ano, em uma primeira infração, e definitivamente em uma segunda infração. O problema está que em relação ao trasporte intra-departamental, que é normalmente feito em micros, vans e outros pequenos veículos, o dono ou é o motorista ou tem só aquele veículo. A perda do uso do mesmo implicaria na falência da pequena empresa, e na incapacidade de trazer sustento para suas famílias. Mas a pergunta ainda fica: Que tal não dirigirem bêbados? O que me espanta é a coragem destes motoristas de saírem às ruas, de alguma maneira justificando a possibilidade do motorista estar bêbado, para reclamarem seus direitos de classe.

Assim, na política. No meio desta confusão toda, o partido do governo, o MAS – Movimiento al Socialismo, está dividido. Um de seus mais importantes membros, Félix Patzi, ex-ministro da educação do primeiro governo Morales, foi pego dirigindo bêbado. O problema era que Patzi, político extremamente popular com os campesinos e certos movimentos sociais, era candidato para o partido nas próximas eleições. Ele postulava à posição de governador do departamento de La Paz. A reação de Morales e de outros altos dirigentes do MAS foi a de pedir a Patzi que não se candidatasse, o que ele se negou a fazer. Estava cumprindo com as penas jurídica e comunitária – a qual envolveu fazer um número de tijolos de barro para a sua comunidade. Já havia pedido desculpas ao presidente, disse ele, e portanto, não via porque não poderia se candidatar. Aparentemente, disse, não era tanto por si, estaria contente de voltar a dar aulas na universidade - Patzi, intelectual aymara e militante do MAS, é professor de sociologia, mas a população o conclamava. A briga interna está acontecendo às claras. Como político e professor de sociologia, Patzi deveria dar o primeiro exemplo para sua sociedade, mas em um país onde é mais ou menos aceitável um motorista profissional dirigir bêbado, o que se espera de um motorista particular?

Ponto de Partida de Movilidades - El Alto

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

José Luís

José Luís tem 26 anos, dono de uma risada gostosa, é aberto, talentoso e inteligente. Faz cinco anos que trabalha de guia no parque nacional de Carrasco. É membro de uma associação comunitária e, junto com outros jovens, recebe um salário e divide o lucro com o restante de sua comunidade - onde a maioria vive da coca, diz sarcasticamente: “Nem se importam com o que a gente faz, mas fazemos de qualquer jeito”. Não tem nenhum problema em contar sua história, suas visões, e ri cinicamente quando fala do peso que a coca tem em sua vida pessoal e de sua comunidade.

José Luís nasceu na região de Sucre e sua língua materna – literalmente - é o quéchua que utiliza para comunicar-se com a mãe. Estavam para comprar uma casa, quando o pai foi atraído pelo boom da coca nos anos 80. Se instalaram em Chapare, como muitas outras famílias do altiplano, buscando um futuro melhor. A ideia era fazer mais dinheiro para poder voltar para Sucre e viver bem na casa sonhada. Seu pai virou cultivador de coca, também fabricante e vendedor de pasta de cocaína. Três anos mais tarde, morreu deixando a esposa com quatro filhos para criar. José Luís estava com 6 anos, seu irmão menor, bebê. Diz que se lembra do pai. Sua mãe teve grave problemas para se adaptar, acostumada com o altiplano, aquela selva húmida e quente lhe fazia mal a saúde. Também pegou dengue hemorrágica que a pôs à beira da morte – ele e seus irmãos tiveram que passar algum tempo morando em um orfanato. José Luís sobreviveu, concluiu a escola, começou a estudar música. Mas sua mãe ficou doente de novo. Teve que deixar o colégio para ajudá-la. Já não fez mais música - nem coisa nenhuma. Quando a mãe melhorou, pegou o violão, que carrega sempre consigo, e saiu de viagem. Da Bolívia entrou no Brasil por Guayamerín e foi de Boa Vista até o mar. Seguiu todo o rio Amazonas, passou por Manaus, Alter do Chão até chegar em Belém. “Aqui a gente come peixe, no Brasil, se come muita carne...no barco, nos serviam carne”. Voltou. Passou um tempo trabalhando em Santa Cruz como pintor. “Não pintor de paredes, mas de quadros, de murais”. Fazia dinheiro decorando as paredes de restaurantes e clubes, aprendeu na escola a desenhar mas nunca seguiu estudando arte, seu modelo de perfeição é a semelhança à realidade, está perto, mas nem tanto, diz. Voltou para viver com a mãe no Chapare, não gosta de Santa Cruz que “parece uma cidade brasileira, não é?”

Foram as ONGs que trouxeram um futuro diferente a sua comunidade. José Luís tem uma visão ambivalente, sabe que elas ainda são necessárias, ajudam com os projetos. No momento, sua associação está projetando um restaurante e alojamento para turistas no parque e também um sistema de luz elétrica para a comunidade - até agora não tem. “Estamos a 800m da rede, mas a prefeitura não vem”. Fizeram um projeto para uma mini-estação: “vamos conseguir financiamento através das ONGs, e também, já podemos entrar com a contrapartida”, dinheiro que arrecadam através do projeto de guias no parque. Das ONGs reclama que ensinam a plantar, mas não ensinam a vender. “As ONGs trabalham com as comunidades, ajudam a fazer projetos, a conseguir fundos, mas não nos fazem independentes”. Fazem outros projetos também, ensinam a plantar orgânico, laranjas...plantar palmito em vez de coca. “Mas entre palmito e coca, a coca dá mais dinheiro...e menos trabalho”. O pessoal é acomodado mesmo, diz, não pensam em ganhar mais. “A coca dá o suficiente, se gasta o excedente em festas e coisas assim”. José Luís também não está seguro que as políticas de Evo Morales em relação à coca estão certas. “Cada família pode plantar uma quantia legalmente, mais que isso não pode. Evo também está implementando uma fábrica para beneficiar a coca, fazer produtos, doces, licores, etc.” Diz que as pessoas continuam a fazer pasta para vender, para produção de cocaína. “Aqui no Chapare a coca vai para fora. É para fazer cocaína. A coca que se masca na Bolívia vem das Yungas de La Paz. Essa é uma coca diferente, mais doce, menos potente. O pessoal pensa que somos todos drogados, mas aqui, somente 1-2% da população usa cocaína, mais é a bebida.” Uma vez no parque, nos mostra algumas plantações em meio a selva. Também mostra trecho de floresta secundária, onde a floresta tomou o lugar da coca. “Havia mais coca aqui nos anos 80, 90.”

No futuro, José Luís quer fazer outra coisa, já vai cinco anos trabalhando de guia. Gosta, mas quer mais para si mesmo, reclama que não dá para casar, todos seus colegas são solteiros. Acha que tem que se justificar: “sempre vou trabalhar com a comunidade, mas quero algo para mim, não muito.” Tem planos: primeiro, vai abrir um serpentário. Já tem várias cobras, uma jibóia, também corais, algumas venenosas. "Algumas já fugiram...mas é só saber cuidar", diz. Ele conta que o serpentário, além de dar dinheiro, é para conscientizar a comunidade, para que eles parem de matar as cobras. Pensou em fazer o serpentário lá no orfanato. “Para ajudar as crianças...Mas é muito longe, lá não dá dinheiro.” Então vai alugar um lugar em Villa Tunari mesmo, é mais provável que as pessoas venham. Mais tarde, quando seu irmão acabar os estudos, vão fazer um negócio juntos. Seu irmão mais novo que estuda em Cochabamba é como se fosse seu filho, diz. Os mais velhos saíram de casa, quase nem os vê. “Lá em Cochabamba tem um lago...ninguém usa para nada”. Estão pensando, ele e o irmão, em contatar a prefeitura, em ver se dá para pôr uns pedalinhos... “Seria um bom negócio.” Seu irmão vai ficar em Cochabamba, gosta mais de lá. Mas ele não, prefere ficar aqui mesmo, perto da natureza.

No caminho de Chapare


Primeiro ouvi falar de Chapare por um agrônomo que encontrei em Puerto Quijarro. Morava em Cochabamba, mas tinha um sítio lá, seu local favorito na Bolívia. Preferia as selvas quentes populadas pelos cultivadores de coca que a cidade com a reputação de ter o melhor clima do país. Eu não sabia bem o quê ou onde era. Imaginava um lugar bem longe, escondido no meio da selva amazônica. Ele me convidou: se estivesse em Cochabamba até o final de semana, me levaria para visitar seu sítio em Villa Tunari. Jamais ficaria até o final de semana, pensei. Com o meu roteiro apertado, minha viagem se limitaria ao vales andinos e altiplanos. Pantanais, florestas e chacos seriam para outra viagem.

Peguei o leito de Santa Cruz a Cochabamba, estimulada pela minha amiga do Couchsurfing que jurava que o leito, além de mais confortável, era mais seguro. Fiquei acordada a noite inteira. Em parte por medo, a cada curva, cada vez que o motorista ousava ultrapassar um caminhão, eu tinha uma crise de taquicardia, mas em parte também porque, mesmo no escuro, podia perceber o tipo de terreno que estávamos atravessando. Saindo da cálida Santa Cruz, em vez de ver a vegetação se esmiuçar, a vi transformando-se em selva, em Mata Atlântica. Mata Atlântica com uns rios enormes de leito de pedras que atravessávamos a cada poucos quilómetros. Vi também quando chegamos na tal Villa Tunari, da qual meu amigo tanto havia falado, a dos cocaleiros e da selva perdida. Vi emergir das planícies os primeiros morros cobertos em floresta e vi também quando estes foram se transformando em enormes montanhas e, enfim, num paredão de rocha e terra - as primeiras formações andinas. Por mais que me dissesse que não vim para ver isso, já me arrependia. Como podia subir esse muro tropical três ou quatro vezes mais alto que a descida da Serra do Mar - a porta de entrada dos Andes - no escuro? Como podia perder aquelas curvas com vistas extensas, precipícios, rios e cachoeiras, ouvindo o som e sentindo o cheiro da floresta ao meu lado? Lá no alto, Cochabamba e depois La Paz me esperavam.

Não há muito que fazer em Cochabamba. A terceira maior cidade da Bolívia é um lugar de trabalho, um ponto de encontro para os bolivianos por sua posição no centro geográfico do país, tanto em termos de distância, com também de altura (está a 2,500m). Tem um certo charme, mas nada em especial. Algumas organizações, especialmente ONGs, escolhem a cidade como sede porque é onde as pessoas de todas as regiões podem chegar (mais ou menos) facilmente. Minha parada obrigatória em Cochabamba se resumia a encontrar gente, conhecer pessoas, não lugares turísticos. Tinha meu amigo agrônomo e sua família e também dois contatos do Couchsurfing para conhecer. Um deles, me dava grande esperança, dizia em seu perfil que toda sua vida era dirigida a ajudar seu povo e seu país. Com este indivíduo ia aprender muita coisa, pensei. Telefonei. Ele aceitou me encontrar aquela noite. Assim, no dia seguinte contataria a outra Couchsurfer ou talvez meu amigo que me levaria para jantar. Cochabamba também é conhecida por ter a melhor comida de toda Bolívia (não fiquei sabendo).

Meu encontro não foi bem. Ele era interessante, trabalha como coordenador de uma ONG que fortalece grupos indígenas de etnias minoritárias. De acordo com ele, os índios do Altiplano e Valles, os Quéchuas e Aymaras, são extremamente organizados. Por sua longa história de conflitos e também por serem muitos deles oriundos de comunidades mineiras, são sindicalizados, participam em movimentos sociais e, agora com Evo Morales, do poder. O problema, disse, é que as outras etnias, a maioria localizadas nas partes baixas do país, não têm organizações fortes e não sabem como se organizar. Segundo ele, isso faz com que estas comunidades não sejam contempladas pelos programas e políticas públicas como deveriam ser num governo que se diz pluri-étnico e pluri-cultural como o de Evo Morales. Queria conversar mais com ele, saber suas opiniões, as de seus colegas, como trabalhavam, enfim, até estava disposta a passar mais dias em Cochabamba, se valesse a pena. Saímos para jantar, eu, ele e seus colegas. Só que em vez de falarem comigo, conversavam entre si num espanhol rápido e difícil. Não me envolviam e nem eu conseguia me envolver. Por mais que tentasse, não conseguia receber mais do que respostas monossilábicas, tanto dele, como de sua colega sentada a meu lado. No dia seguinte, triste e frustada, me preparei para ir embora o mais rápido possível, não queria mais saber de couchsurfers, nem ninguém. Entretanto, passeando pela última vez pela cidade, descobri uma pequena passagem colonial, bonitinha, e nela, uma organização que trabalha com turismo comunitário, entrei por curiosidade. Acabei saindo com o guia que me levaria de volta as selvas do Chapare, 2,000m mais abaixo, em direção contrária a que deveria ir. Não sei o que me decidiu, não sei se foi minha frustração da noite anterior, uma estranha atração por aquilo que conhecia e amo – as húmidas florestas tropicais – assim postergando minha entrada a uma região polvorenta, seca e desconhecida - a América andina, ou se foi o puro interesse em conhecer a região cocaleira e seus habitantes.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Bolívia, Santa Cruz


Quando cheguei, já vinha com uma idéia feita do que seria Santa Cruz: uma cidade moderna, brasileira e branca, impulsionada economicamente pela soja e pelo gás (o gás na verdade está quase todo concentrado no departamento de Tarija e não em Santa Cruz). Não tinha nem vontade de conhecer. As coisas que tinha lido até chegar só reforçavam esta idéia: os conflitos entre as terras baixas de Santa Cruz, Beni e Pando pedindo autonomia política da “república índia” de Evo Morales, os problemas do governo boliviano com os fazendeiros brasileiros da fronteira e a nacionalização do gás.

Encontrei uma cidade gostosa, de clima agradável e vegetação verde tropical. Santa Cruz tem sua parte moderna: um pouco afastados do centro, entre os “anéis” (vias que circundam a cidade) 2 e 3, estão os bairros mais nobres e os business centers, shopping centers, restaurantes e night-clubs da cidade, mais particularmente, num bairro de nome intragável - Equipetrol . Mesmo assim, não há muitos prédios altos. O velho centro é tipicamente colonial, com as colunadas dos casarões antigos sombreando as calçadas e as ruas centrais formando o típico tabuleiro de damas das cidades hispânicas e, apesar dos seus mais de 1,5 milhões de habitantes, Santa Cruz tem ares de cidade pequena onde a população se encontra na linda praça 24 de Setiembre, tanto de dia como de noite.

Brasileira exatamente Santa Cruz não é, mas se ouve o português nas ruas. Também tem carnaval, aparentemente parecido ao carioca. As páginas sociais dos jornais descrevem festas pré-carnavalescas que servem feijoada e nas quais as pessoas aparecem vestidas com a camiseta do grupo festivo e as beldades locais são convidadas de honra - Santa Cruz é nacionalmente famosa por suas mulheres bonitas e dizem que a cidade padece do “culto do corpo”, um traço que também chamaria de brasileiro.

Estudantes de medicina e casais braso-bolivianos constituem a população brasileira local. Infelizmente, esses estudantes, que vêm estudar nas universidades privadas bolivianas (é mais barato estudar aqui), têm a reputação de serem insulares e arrogantes com os bolivianos. Já os notórios fazendeiros, que eu imaginava andando pelas ruas da cidade com seus chapéus de cowboy, obviamente não se encontram. Outra coisa brasileira são os buffets a quilo e também pão de queijo, mas este, tipicamente cruceño, é conhecido aqui por cuñapé.

Como turista, não se pode saber ou entender muito do que acontece nos lugares. Sei que as ruas são tomadas por veículos de tracção 4 rodas, geralmente com vidros escuros (alguns podem até ser dos fazendeiros brasileiros!), um sinal de certa opulência e também da presença de um importante setor rural. Mas o que é inegável é a rapidez com que a cidade cresceu: de mais ou menos 50,000 habitantes nos anos 50, passou para 300,000 nos 70 para chegar a quase 1,7 milhão em 2009. Hoje a segunda maior cidade do país. Um quarto da população do departamento de Santa Cruz, que também cresceu em impressionantes proporções, nasceu fora do departamento e 2% no estrangeiro. Santa Cruz conta com o maior número de Paceños (habitantes de La Paz) fora de La Paz e o maior número de Cochabambinos fora de Cochabamba. A base industrial, comercial e agrícola do departamento de Santa Cruz é a maior do país, e portanto, Santa Cruz também arrecada mais impostos que qualquer outro departamento, daí o seu peso político para as demandas de autonomia e redistribuição de recursos.

Bolívia, Puerto Quijarro


Puerto Quijarro, Bolívia, Jan 2010

Saí de São Paulo em um ônibus convencional da companhia Andorinha, decerto o ônibus mais barato que a companhia ainda guarda, usado especialmente para encher de Bolivianos retornando ao seu país. Não há outro serviço que o convencional ligando São Paulo à Corumbá e este ônibus das 11 da manhã, cujo ponto final na realidade fica do outro lado da fronteira em Puerto Quijarro, estava repleto de bolivianos. Quase não se escutava o português entre os passageiros. Período de férias de verão, que também explica a prominência dos bolivianos que estavam indo para ou voltando de seu país de residência.

Puerto Quijarro é uma cidade fronteiriça e, vindo aqui fica mais difícil ainda querer insistir em minha teoria de fronteiras líquidas, em que as populações fronteiriças se mesclam para formar algo um pouco mais homogéneo. Aqui se vê a força do poder estatal em manter (ou ao contrário, não manter) o que é seu, seu. A pobreza contida dentro desta fronteira se difere do maior progresso do lado brasileiro. Corumbá não é a mais avançada das cidades brasileiras, mas é muito mais organizada, séria (palavra tucana) e bonita do que sua irmã gêmea, Puerto Quijarro. Não sei até que ponto há brasileiros morando deste lado da fronteira, já que o povo a pé é majoritariamente de origem indígena. Dos pick-ups que competem com os taxis caindo aos pedaços nas ruas da cidade, quantos são propriedades de brasileiros ou de bolivianos não sei. Já do outro lado, sei que há uma considerável população de bolivianos que trabalham e têm comércios.

Em Puerto Quijarro, fora os pôsters de Evo Morales e pichamentos políticos que anunciam que as eleições foram a pouco, o estado aqui parece não existente. Muita pobreza e lixo nas ruas, onde só a rua principal, que leva da fronteira à estação de trem, é pavimentada. Isso não impede que os brasileiros não sejam cúmplices desta situação. É possível entrar na Bolívia passando pela posto de imigração e não ser parado. A receita federal tampouco está interessada em saber o que está nas bagagens das pessoas - não fazem nem uma escolha aleatória. Simplesmente sobem no ônibus e perguntam "alguém de vocês fez compras em algum lugar" cuja resposta óbvia é "não tudo que levamos é nosso". Um boliviano de Cochabamba, me contou que uma vez nos anos 80 ele veio até Corumbá comprar um Pick Up roubado. Disse que pagou pelo Pick Up, na época com 3-4 anos de uso, uns U$1500! Fico pensando que isso nem para o ladrão de carros deveria valer a pena. Mas aparentemente as coisas estão melhores. Comprar carros em Corumbá e trazê-los para a Bolívia já não é tão fácil e nem bom negócio.

O pantanal, no entanto, é o mesmo. Lindo dos dois lados, só que é mais fácil conseguir visitar o lado brasileiro que além de mais regulamentado – a pesca, por exemplo é proibida e que me disseram não acontece fora de época – é mais organizado. Para aqueles que querem desrespeitar as leis ambientais é só cruzar a fronteira. No entanto, dizem que o lado boliviano é muito mais preservado, provavelmente porque com a pobreza, não muito ainda foi explorado. De qualquer maneira, os brasileiros atravessam a fronteira para vir comer jacaré à beira da lagoa em Puerto Suárez e os bolivianos que não podem ou não querem atravessar para o lado Brasileiro podem pedir uma feijoada aos sábados aqui. A televisão é Globo e também boliviana, (a recepção da Globo é melhor) e a música é uma mistura. Se ouve desde sertanejo brasileiro até mariachis mexicanos e tudo o que tiver situado entre estes dois extremos da América Latina. Se há internet e casas de telefone por todas as partes, o jornal, que vem de Sta. Cruz, só chega no dia seguinte. Há também várias agências da AeroSur, com o aeroporto em Puerto Suárez. Me parece que a maioria dos abastados, quando não estão em seus pick-ups, viajam de jetinhos, assim evitando longas viagens em estradas em má condições e terrenos difíceis.

Estamos no extremo do departamento de Sta. Cruz, onde há grande resistência contra as políticas e a pessoa de Evo Morales. Tanto os mais ricos como os mais pobres parecem falar mal dele aqui. Dizem principalmente que ele quer implantar o sistema comunista de Fidel Castro e que as coisas já começam a faltar. Também dizem que ele governa o país como se governasse um sindicato.

O que se percebe também é que há uma grande divisão da sociedade entre índios e não índios, ou melhor, politicamente entre índios do altiplano e o resto da população. Os brancos bolivianos pensam contar com o apoio dos índios guaranis e outros que vivem nas partes baixas do país, a chamada lua crescente que vai do departamento de Tajira até Pando e que ocupa quase dois terços do território Boliviano, mas que entretanto continua sendo menos populoso e agora, economicamente mais rico. De qualquer maneira, um país dividido.

Trem da Morte


Santa Cruz, fevereiro 2010


Domingo a noite tomei o “Trem da Morte” saindo de Puerto Quijarro em direção à Santa Cruz. O “Superpullman de domingo a noite”, dizia a propaganda, contava com ar condicionado, TV, bar-restaurante, serviço de bordo e cadeiras reclináveis. E realmente não decepcionou quanto à disponibilidade desses serviços. A TV, não tinha como esquecê-la. Assim que entramos, ela foi ligada quase que ao máximo volume com vídeos musicais latino-americanos. Grande foi minha felicidade quando o trem começou a andar ao passo de uma Cumbia antiga. Me parecia a música perfeita para acompanhar uma viagem de trem – não sei se por causa do ritmo em si, ou uma associação que fiz deste estilo musical com uma propaganda de café colombiano que mostrava um maria-fumaça serpenteando encostas cobertas em cafezais. O “Trem da Morte” nos chaqualhou ao ritmo de Cumbia por uns poucos kms até a cidade vizinha de Puerto Suárez, quando minha alegria subitamente desapareceu. Fora a entrada de mais passageiros e uma grande quantidade de mosquitos (já eram seis horas da tarde), a música foi repentinamente trocada. De cumbia passamos a escutar melosas baladas mexicanas com seus acompanhantes vídeos. Neles, o “Galã-Cantor”, quase sempre vestido em trajes mexicanos e não poucas vezes montado a cavalo, chorava por uma mulher que não o queria ou que tinha morrido, quando ele mesmo não morria deixando sua amada aos prantos. Isso durou mais ou menos uma hora até que para acompanhar o “jantar” foram apresentados os filmes da noite: três. Todos nos engraciando com a presença das forças (ou um super-soldado ou boxeador) americano/as que nos/se salvavam do mal – seus inimigos inevitavelmente eram os russos ou terroristas asiáticos.

Finalmente a alguma hora da noite veio o silêncio e o apague das luzes, nos deixando as sós com os movimentos abruptos mas constantes do trem e o eficientíssimo ar-condicionado. A maioria dos passageiros, parece, já estavam acostumados com o ritual da viagem. Haviam trazido seus cobertores e nem piscaram os olhos quando o serviço de bordo entrou na cabine oferecendo jantar, preferindo esperar a parada numa pequena estação em que os habitantes entravam a bordo oferecendo “majaditos” (um prato arroz com carne, uma verdura e algum outro vegetal como banana da terra ou mandioca) provavelmente de uma qualidade e preço muito melhor que a comida oferecida no trem.

Quanto ao porque de um trem que atravessa uma planície inócua se chamar “Trem da Morte”? Várias foram as respostas que recebi, nenhuma delas diretamente ligadas à morte. A primeira tem a ver com o tempo da viagem e as multíssimas paradas – a morte neste caso seria de tédio. Mas ultimamente, com o Orientexpreso Superpullman e o Ferrobus cama e semi-cama, esta explicação já não vem ao caso. Outra razão seria a falta de conforto dos antigos trens, com bancos de madeiras, grande quantidade de gente e falta de ar condicionado. Neste caso, se o trem chaqualhava tanto como os de hoje e tivéssemos que sentar em bancos de madeiras não acolchoados, a morte seria da bunda e da espinha dorsal. A terceira hipótese teria que ver com o fato do trem era utilizado para contrabando, principalmente de carros. Em que maneira isso se relaciona com a morte, não entendi muito bem. Algo a ver com parar no meio do caminho e receber ou deixar carros em algum lugar. Acho que é hora deste nome mudar já que parece assustar um bom número de brasileiros.

Mas assustada mesmo estou eu. Vou pegar o ónibus leito esta noite em direção à Cochabamba sabendo que no mês de janeiro já morreram 72 pessoas nas estradas bolivianas - em cinco acidentes de ónibus. Dois acidentes recentes foram a caída de um ônibus nos precipícios entre Cochabamba e La Paz envolvendo um motorista que estava dirigindo bêbado e aparentemente ignorou os pedidos de passageiros para que parasse ou dirigisse mais devagar e o outro em que dois ônibus se chocaram. Uma das companhias envolvidas, a Cosmos, que não é uma das menores, se encontra agora fechada. Dizem que as companhias mais caras são mais bem regularizadas, mas acho que esta Cosmos era uma delas e também dizem que os leitos, além de serem mais confortáveis, são mais seguros. Será que tomam mais cuidado com passageiros mais caros/ricos? Os motoristas utilizados são mais experientes ou dirigem melhor? Ou será essa só uma maneira que os bolivianos classe-média encontraram para se sentirem mais seguros? De qualquer maneira, esta série de horrendos acidentes tem provocado a reação da sociedade e do governo que se dispôs a tornar as leis mais rígidas e monitorar melhor ônibus, empresas, condíções de trabalho e as carteiras de habilitação dos motoristas. Infelizmente também me instigou a pegar um leito em vez de um convencional (não quero por em dúvida o bom senso da classe média boliviana!), assim perdendo o que deveria ser um dos mais lindos e interessantes trechos de minha viagem, saindo da quente e tropical Santa Cruz, subindo as encostas amazónicas do Chapare (mais importante zona cocaleira boliviana) para atingir os vales "primaveris" de Cochabamba.