terça-feira, 21 de abril de 2009

Corais

As células encontram um lugar para se firmarem.
Aqueles ossos velhos e abandonados
parecem adequados
célula em cima de célula em cima de osso
elas vão morrendo se calcificando.
Célula viva em cima de células mortas
O grande coral amarelo vai se reproduzindo.

Este não vai durar milhares de anos.
Mas vai se calcificando, endurecendo, amarelando
e arrebentando a carne vermelha grudada ao osso.
Sangrando.
E assim vai crescendo a fauna viva
Nas águas quentes de minha boca.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Good-bye London

A feeling of loneliness
Just me in a crowd.
No more going from north to south,
Inner city to inner city,
No more hops on the 73,
Different languages,
Different people.

Watching the bars,
Population change.
Today's Latinos,
Tomorrow's Eastern Europeans.
Girls, blonde and pretty,
Delighted customers.
Dark-skins in the kitchens.

In a daze, people come and go.
Some want the countryside,
Others their ‘home’,
To me, it's my town
The buses, the streets.
Trendy Hampstead, Camden Town,
Covent Garden, My Inner Cities.

So good-bye to Hackney
With its smelly Luanda bins
Busy and dirty Dalston
And to the Silverlink.
To Spanish squatters,
Kurdish militants,
West Indian yardies.

Good-bye to Highbury & Islington Station
With the homeless sitting by Barclays
And to beautiful Highbury Fields,
And to Clissold Park
(Unmanned toilets,
Needles in the playground).
Good-bye to London Fields.

Good-bye to Laycock kids
And friends of friends of Laycock kids,
Harassing the neighbourhood,
Shouting insults at middle-aged adults.
To the hostel opposite
And its fire engines,
To loud Kurdish music and to rap.

Good-bye to Brixton, Stockwell, Newham
And the Angolan community,
Asylum-seekers
And the NHS.
The NHS, my children’s birth, work.
Good-bye to the British Government,
To Tony Blair and the Welfare State.

Good-bye to the woman who took my mirror
Mirror of fake respectability.
Showing its veins, cracks, its fragility,
Like the kids shouting insults.
Respectability that crumbled away
Like the paint on the door.
Protecting us from them.

Good-bye to alternative London,
To unthinking London
To alienated London,
Good-bye to the long gone squats of Stoke Newington and Clissold Crescent
And to the long gone best carrot cake in town.
Not the Starbuck-Costa-Caffé Nero-carrot-passion-double-chocolate-cake in a pre-toasted ciabbata-style and iced-coffee-modern-imitation.
But to hippy, lovingly made, before-moving-to-the-West-Country Style!
(White, alienated, West Country).

Good-bye to Consumer Choice
(or may be not)
At least, to its more ideological,
Clinical version.
Goodbye to cynicism,
And emotionless condescending,
And to post-modern “everything is acceptable for a laugh" attitude.
Goodbye to the centre of the world,
And to the wastage of the pieces of my life.

Julia Felmanas

London 4/9/2003

Quando me descobri Mulher

Quando eu me descobri Mulher
Não foi quando eu era criança.
Quando eu era criança eu era humanista
Andava pelada, não entendia roupas
Não via diferença entre "maiô" e calcinha
Queria não ter dinheiro
E construir minha casa com minhas próprias mãos.

Quando me descobri Mulher
Não foi quando me tornei adolescente.
Quando eu era adolescente
Virei igualitária
Achava que podia o mesmo que os meninos
Se eles sim, eu também.

Quando me descobri Mulher
Não foi quando engravidei.
Quando engravidei
Me descobri bicho.
Descobri minhas funções
E disfunções físicas
Que me faziam menos que um animal
Descobri que não era herói
De uma novela com final feliz

Foi quando eu encontrei as latino americanas
Aí sim, me descobri Mulher.
Quando percebi a força que tinham
Aquela força que atravessava o machismo
A diligência, a capacidade de lutar até o fim.
Muitas lutas, mais de uma.
Primeiro com os homens, depois sem eles.

Foi quando descobri que elas eram minhas reais heroínas
As chilenas, as peruanas, exiladas, mexicanas,
As colombianas, equatorianas, imigrantes,
Brasileiras, trabalhadoras, provedoras.
Com elas aprendi o respeito e também a diferença.
Com elas aprendi a sentir orgulho de tudo que sou
Tudo e sobre tudo, Mulher.

Julia Felmanas

Florianópolis 03/2009

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Guerra Fria

A guerra foi fria, nos dizem,

Porque a ameaça foi feita:

De um lado, do outro.

Mas nada aconteceu.


Fria para os que não viram o sangue,

Fria pr'aqueles diante das TVs,

Que se viam, nada sentiam,

Quando viam.


Pedro Manuel ingressou no MPLA,

Depois de nascido o filho Vladimir.

Tinha dezoitos anos,

A guerra já ia a cinco...

Que conhecia ele?

De Luanda, não tinha sangue nas mãos,

Mas isso antes do Vladi...


Em Cuando-Cubango

Encontrou José,

Negro, Cubano,

Que veio ajudar seu país.

(Ou seria atrapalhar?)

Antes de chegar, que sabia d 'Angola?

Tinha até filha em Cabinda agora.


José voltou para Cuba,

Só pra conhecer a Nicarágua...

De Angola, não gostou,

De dia lutavam a seu lado,

A noite com os da Unita.

De lá voltou marcado,

Em seu corpo e sua alma.


A guerra foi fria, nos dizem,

Porque a Europa que tinha nas costas

Canhões, mísseis e foguetes

Não virou uma cratera nuclear.

...

No quarto do hospital psiquiátrico

Se prepara.

Volta à pensão dos refugiados.

Dizem que ali quis

Da janela se atirar.


Estela não se lembra, não acredita,

Não quer acreditar.

Ameaçou o pequeno Uílian.

Chamaram de post-natal blues.

Mas filho de estuprador,

É fácil carregar?


Sabe que a qualquer hora,

Podem mandá-la de volta.

Não é refugiada política,

É imigrante econômica.


Imigrante econômica...

Não conheceu o pai,

Imigrante econômica

Viu desaparecer a mãe...


Imigrante econômica

E alguém a ajudou,

A pegar um avião,

E aqui no frio,

De barriga, chegou.


Imigrante econômica estuprada...

Que resultou em barriga e no Uílian.

Imigrante econômica...

Será um insulto?


E a guerra foi fria, nos dizem,

Fria para os que não viram o sangue,

Fria pra'queles

Que diante de seus livros,

Se viam, nada sentiam,

Quando viam.

....

Monica olha pra filha,

Vê mudanças pela TV.

O Ditador chegou aqui,

E não é que o querem prender?


Deixou seu país às pressas,

Por ela e pelo ex-marido,

E agora que podia voltar...

Depois de tantos anos no exílio?


Voltar? Se não viu sua mãe morrer...

Família, como tinha,

Já não tem mais...

Sua filha,

Mais daqui do que de lá.

...E então?


Melhor é ir ver o General.

Gritar na cara dele,

Como nunca pôde gritar,

Chamá-lo de sacana, pular,

E pôr um pouquinho pra fora

De tudo, tudo aquilo

De que não pôde se olvidar.


E a guerra foi fria, nos dizem,

Fria para os que não viram o sangue

Fria pra'queles

Que, se viam, nada sentiam,

Quando viam.

...

E Janice?

Não tinha nada a ver com isso.

Só fez quatro anos de escola,

Não tinha uma por perto.

Os pais queriam sua ajuda,

Com os irmãos, em casa, na roça...

Achava que não estava certo,

Mas, se querer mudar era comunismo?.


E para nós, sufocados por ditaduras ou guerras,

Para nós, que não pudemos ter democracia,

Para nós, que a escolha política era exclusão, exílio ou morte?

Não tivemos opção na modernidade.

E agora?

Reclamam da Religião?

Dos Fundamentalistas?


Pois é... a guerra foi fria...

Fria para os que não viram o sangue,

Fria pra'queles,

Que se viram, nada sentiram,

Quando viram.


Julia 03/09

As Cortinas Rasgadas do Museu

As cortinas rasgadas do museu refletem uma história
Uma historia que se esqueceu
Que não se deixou viver
Parada no tempo,
Como se nunca houvesse existido
... e sem razão

As cortinas rasgadas do museu trazem uma dor
Uma dor, junto com os nomes das ruas,
De uma época em que se havia esperança,
Em que não se conhecia o futuro,
Só um passado terrível.

As cortinas rasgadas do museu
E os nomes das ruas...
...Das ruas, das casas e das pessoas...
Fingindo que nunca existiram,
Que nunca passou o que passou
...E sem razão.

As cortinas e as ruas estão lá,
Se escondendo, esperando que as pessoas não venham a se lembrar
Que se devia mudar...

Ou são as pessoas que se fingem de cegas?
Para querer guardar
Um passado que é ainda importante e cheio de orgulho
Mas que não se deve lembrar?

O momento é feito de outras coisas
De esquecer o passado, esquecer o orgulho...
... E de sorrir,
Sorrir e ver e aprender uma nova filosofia
A filosofia certa!
Quem não pode acreditar?

Quando todos dizem,
Todos pensam cheios de confiança:
A guerra acabou! O lado bom ganhou!
O resto...

Vamos, te dou minha mão.
E se seguir meu caminho,
Do jeito que EU te ensino,
Te salvarei.
Te salvarei e até prometo
Que posso esquecer as cortinas
As cortinas velhas e rasgadas do museu.

Julia Felmanas
Maputo 08/98

domingo, 5 de abril de 2009

Shopping Iguatemi

Um exército de moças entra no shopping. Poderiam ter sido feitas, todas elas, na mesma fábrica - a fábrica "Barverdadeira Brasileira S.A." Esperando a perfeição. Direto de ali para a exportação. É claro que de aqui a alguns anos, estas moças já teriam passado a data de validade. Seriam outras, mais bem acabadas, completas, mais 'cirurgicamente bem intervencionadas' - ecoando um elogio feito pela Veja a uma personalidade famosa - "agora com narizes perfeitos" ou "com 10% mais silicone nas bundas e seios". 10% a mais pelo mesmo preço, é claro. Só não pode é levar duas por uma, isso não! São todas boas moças de família.

O shopping, o mais novo da cidade, chegou tarde. Tão tarde que lotou imediatamente. A cidade estava ansiosa por mais alguns. Como pode, a cidade com a melhor qualidade de vida, só ter um shopping? E ainda um shopping já tão velho, pequeno. E elas saíram de suas tocas, escolas, casas de família, clínicas privadas e até das praias para encherem as praças e ruas artificiais do mais novo shopping da cidade, aquele que finalmente trazia as lojas paulistas. Assim as moças poderiam passear e ser celebridades aqui mesmo, na cidade, passear e fazer compras, sem ter que ir à São Paulo. E o shopping chegou. Já era tempo. Não importa se está em cima do mangue, que a região é alagadiça e que as casas ao redor possam inundar. Também não importa se as 17 novas salas de cinema passam os mesmos 5 filmes que passam nas outras 10 salas da cidade. Andar pelas ruas de porcelanato, ver suas reflexões nos vidros brilhantes das vitrines ou na figuras de outras moças, isso já dá satisfação demais.


Bonitas todas, sem gorduras a mais ou a menos, gorduras estas (ou será silicone?) sempre preenchendo os lugares certos. O cabelo sempre longo. Cabelo curto é só para as mais velhas - as que já passaram da data de validade - ou para alguma Atriz Global Rebelde, porque esta já pode. Os tamancos de salto alto, as calças tipo jeans apertadas e uma blusinha, engraçadinha, solta. Não são Femmes Fatales, nem muito sofisticadas, mas como naqueles filmes americanos, acessíveis, confortáveis e confiáveis - "the girl next door" - aquelas que inspiram as primeiras paixões, mas com quem se pode conversar e até casar, e sempre, sempre com um sorriso no rosto. Bonitas e simpáticas. Sim, produto para exportação.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Impressões de duas viagens: do Vale do Café ao Valle de los Ingenios

O Valle de los Ingenios se encontra nos arredores da velha cidade de Trinidad de Cuba que se enriqueceu através do cultivo da cana-de-açúcar. Em seu auge, a cidade e seus engenhos tinham uma população de mais de onze mil escravos em relação a uma população total de aproximadamente vinte e oito mil pessoas. Estas são terras devastadas. Os campos antigamente cobertos por florestas, e depois pela cana, agora secos, queimados, acabados. O sol de inverno, fraco, é constante e o céu azul clarinho sinaliza a falta de chuva. Hoje não tem cana, nem nada, mas o fogo comendo o mato ralo e um pouco de gado, leiteiro talvez, porque em Cuba não há muita carne de vaca. A fumaça sobe o céu já esbranquiçado, sem oxigênio, o fogo acalenta cada vez mais a terra já torrada e destrói as poucas possibilidades de qualquer outra vegetação vingar que não um campo pobre, propício a mais fogo. A floresta fora devastada por uma história sangrenta e, ambas, a floresta e a história, quase não deixam rastro. Somente algumas construções abandonadas, vilarejos pobres habitados por negros que por séculos permanecem ali ao redor das velhas plantações de cana-de-açúcar. Terras devastadas, história olvidada.


O museu do trenzinho é um restaurante, o museu, a antiga casa grande da fazenda, agora serve comida criolla - invariavelmente o arroz com feijão em sua versão cubana moros y cristianos, com carne de porco e viandas, isto é, batatas doces, abóboras, inhames, o que tiver. No quintal, um antigo trapiche (moenda) de ferro fabricado em Buffalo, EUA, em volta deste, duas negras esperam os turistas pedirem guarapo (caldo de cana). E só. No museu do rum é a mesma coisa. Os guias explicam: "tudo começou com a chegada da cana-de-açúcar...depois vieram as plantações e os escravos... Mas o que é realmente importante é que no século XIX a produção foi totalmente mecanizada... chegaram as máquinas e as estradas de ferro..." E assim, trezentos anos de história são mastigados e engolidos em um murmuro de segundos. Será vergonha da feia realidade que guarda aquela bebida mais bem refinada que nossa cachaça e que hoje é destilada por uma importante vinícola francesa? Uma história indigna que nem franceses, nem cubanos talvez queiram admitir.



E eu que pensava que a Revolução valorizaria esta história? Um pouco talvez. Em Havana tem a Casa de África em homenagem as relações pós-revolucionárias África–Cuba e também o Museu dos Orixás. A santeria hoje é reconhecida e está em crescimento. Paradoxalmente, a história da escravidão é melhor contada em Pinar del Rio, região mais conhecida por seus pequenos agricultores que pelas plantações escravistas, com uma reconstrução de um palenque – equivalente ao nosso quilombo - para onde os negros cimarrones escapavam da escravidão. Entretanto, no Valle de los Ingenios, as terras da cana, e nas ruas da velha Trinidad esta história parece escondida. Conta-se que José Martí queria a abolição da escravidão e que os negros estiveram ao lado da independência. Os negros, aparentemente, também foram os grandes beneficiados por La Revolución. Mas aqui no Valle a contra-revolução foi forte. Engenhos de açúcar, velhos senhores e conservadorismo normalmente andam de mãos dadas.


Se em Cuba a liberação do colonialismo e o abolicionismo caminharam juntos, as coisas foram um pouco diferente no Brasil. Em 1888 a Princesa Isabel decretou o fim da escravidão. Até hoje ela está viva em simbolismos culturais, embora a cantada princesa fosse a última governante de todo o continente americano, inteiramente marcado pela escravidão, a assinar a alforria geral.


No Brasil, o Vale do Paraíba valoriza a história do seu jeito. Ali se pode dormir em hotéis fazendas cheirando a madeira de lei encerada, comer com talheres de prata e, durante o festival de inverno, ouvir música clássica nos salões de magníficas propriedades em improvisados "saraus" ou então no centro da histórica Vassouras, capital do Vale do Café. Se pode ouvir histórias glorificando os barões do café, e visitar as lindas casas-grandes em estilo colonial com suas avenidas de palmeiras imperiais cubanas. Talvez, mais brasileiramente visível, (ou quem sabe também brasileiramente invisível), estão os turistas quase todos brancos (como disse Caetano Veloso), atuando em seus eternos papeis de senhores e os trabalhadores negros em seus simétricos e opostos papeis de vassalos. Se Cuba se envergonha ou esquece em vez de afirmar e valorizar, talvez acreditando que o socialismo é capaz de borrar o problema (e a história) racial, no Vale do Café ainda podemos respirar o ar da escravidão tão real quanto a grossa névoa matinal que quase logramos apalpar. Não há como evitar os contrastes múltiplos e constantes. A alguns minutos da industrializada Volta Redonda está Barra do Piraí, bagunçada e suja, meio esquecida, por onde a estrada de ferro ainda passa. Algumas fazendas históricas se encontram na periferia da cidade, isto é, nos bairros e não no campo. Mas as fazendas são o campo e em volta, mais afora, vilarejos, povoados e alguns quilombos de população toda negra (ou quase toda negra). Esquecida e pobre. É claro que certas fazendas tratam melhor a história do negro, valorizam-na um pouco mais. A fazenda Ponte Alta, por exemplo, mantém o prédio da senzala intacto e uma das empregadas negras participa do "Sarau" teatral que conta a história da fazenda e da região. Outras não se envergonham de glorificar o seu passado senhoril, contando as histórias dos homens que vieram se aventurar por estas bandas, que receberam títulos imperiais por causa da riqueza trazida pelo café plantado com mãos escravas.


O Vale do Café é como uma máquina do tempo que revela duas histórias desenvolvidas paralelamente pelo caminho de duas estradas de ferro. Uma que desce o Vale do Paraíba para o Rio de Janeiro, a outra partindo de Santos em direção ao interior paulista. Em seu ciclo de abatimento da mata nativa, plantação e exaustão da terra, e findo o escravagismo, as plantações de café foram se movendo ao longo do Vale finalmente atingindo o oeste do estado de São Paulo. À população negra, os donos deram o direito de ali continuarem ou às vezes deixaram-lhes lotes de terras agora inférteis e esgotados. . A estrada de ferro que inicialmente descera o café agora descia ex-escravos e seus filhos à capital, Rio de Janeiro, em busca de uma vida melhor. Assim os vilarejos, povoados, quilombos e "favelas" foram se formando. Do porto de Santos, que quase não viu crescimento entre os séculos da descoberta até o século XIX, subiram os imigrantes para a renovada atividade cafeeira no oeste, não como escravos, mas como pessoas livres. Trabalho duro, sem dúvida, dos quais muitos fugiam e se arrependiam, mas trabalho remunerado, colonos com outros direitos, outras concessões e em outras terras.


Esta não é uma história desconhecida e, no entanto, quantos brasileiros hoje são capazes de lembrar que o café foi em seu princípio uma cultura escravista? Para muitos esta lavoura é romanticamente associada à idéia do imigrante trabalhador, induzindo levianas comparações entre a suposta "incapacidade" do negro brasileiro com a "produtividade" dos imigrantes não-negros. Pelas marcas que ainda retem, o Vale do Café é iluminador, ali se pode compreender melhor os acontecimentos de mais de um século atrás. A história está tão imprimida na terra como as marcas das erosões que vêm arrebentando o Vale desde os tempos em que suas florestas fecundas foram cortadas para plantar os primeiros cafezais, onde o gado continua a machucar a terra e o café não cresce mais.


Igual que Cuba, a terra devastada, igual que Cuba, o gado, a secura, a névoa grossa da manhã invernal, a terra torrada, a falta de chuva, o céu azul esbranquiçado, a vaga lembrança de uma vegetação exuberante perdida para uma monocultura mal feita, devastadora, igual que Cuba o povo esquecido ao redor das fazendas que deixaram de existir. Cuba mais seca, sua floresta nativa dizimada, arrebentada e arrasada pelas conseqüências climáticas de hoje e de outrora, um país tropical sem frutas. Por outro lado, o sudeste brasileiro precisou que muitas mais florestas fossem cortadas para sentir a secura de um Rio de Janeiro que em julho se iguala em temperatura e teor de umidade à Lisboa. Posso estar sendo um pouco injusta com Cuba, mas se por um lado a herança da escravidão é palpável no Vale do Paraíba, isso não acontece conscientemente, mas pelo contrário, é porque é a conseqüência social de um modelo problemático que nunca foi solucionado e nem mesmo atenuado ou remediado.


Fora a gritante divisão do trabalho, dos opostos riqueza-pobreza, campo-cidade, branco-negro está o próprio festival de inverno do Vale do Café como símbolo maior desta herança. A programação cultural é clássica, européia; eruditas apresentações que condescendem em abrir espaço para o folclore local na noite do último domingo do festival. O que me atraiu ao vale foi ter aprendido sobre o jongo. Ver o jongo no Vale do Café era um dos propósitos de minha viagem. No domingo à noite, todos os grupos da região, inclusive grupos apresentando também folia dos reis e calangos tocavam em diferentes rodas ao mesmo tempo e competiam entre si pelo mesmo espaço no meio da praça. O palco armado para o festival havia sido desmontado, a maioria dos turistas já havia ido embora. Todos os grupos se apresentando juntos - e separadamente. Do jongo, conhecia a sua sutileza, seus cantos codificados, os desafios entre seus membros e o respeito aos mais velhos. Tudo isso perdido em meio a uma babilônia de apresentações, uma cacofonia de tambores e cores e cantos. Casualmente, encontrei uma das organizadoras do festival e perguntei. Porque? Será que não merecem um espaço para serem apreciados individualmente? Talvez não precisem de palco, o pé no chão convinha. Mas todos juntos? Ela simplesmente me respondeu "O jongo é só isso mesmo, não tem nada além disso". Na cidade branca construída pelas mãos dos negros, no Brasil moderno, ainda vemos o erudito para a educada elite e a brincadeira dos outros no final da festa. Quanto à organizadora, porque ela haveria de se importar? Hoje, no Vale do Paraíba, já não há viajantes estrangeiros que se mesmerizam com a “dança primitiva” dos negros.



Fazenda Ponte Alta, Vale do Café



Julia Felmanas 03/0