quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Retratos do Pós - pedaços 2

Café minúsculo, a era do desconfortável, desconfortavelmente ultra-cool. Lugarzinho simples, uma porta, assoalho de madeira, bar montado em chapas de zinco com suas superfícies também de madeira em formas arredondadas, quadro-negro servido de menu. Música saindo de um canto chamado LFRLondon Fields Radio - decorado com um microfone dos anos quarenta, mas a música mesmo soa ecleticamente de um mini-computador Apple, branco: de Nicco a Reggae, a Blues, via Rolling Stones e Punk. A clientela é branca: jovens usando roupas vintage e fotógrafos em seus laptops, há bancos invés de cadeiras e são poucas as mesas. Hackney em seu máximo cliché, a quadras de London Fields. Wilton Way, a velha Wilton Way não longe da antiga Front Line. Mas para onde foi a Front Line? Teriam os ex-FrontLiners vendido suas ex-council period properties para os artistas em potencial que polulam as partes mais esteticamente atraentes do bairro, e se mandado para as suas ilhas caribenhas?

Em Hilman St., atrás do Town Hall, se encontra o centro de serviços de Hackney. Ali estão localizados os serviços sociais e de habitação, entre outros. Este é um prédio ultramoderno, alto, quase inteiramente de vidro verde, os quatro andares dando para um pátio coberto também de vidro, que dá a impressão de espaço, calma, paz e de eficiência moderna, como se pudessem desfazer-se dos problemas que cada pessoa leva ali consigo, que juntamente fazem de Hackney um bairro de 'Inner-City', contando com uma maior proporção de problemas que a maioria dos bairros do país. Problemas de droga, problemas de crime, problemas de gangues adolescentes, problemas de desemprego, problemas de álcool, problemas de falta de tempo e de estresse, e de descaso pelos filhos por drogas, depressão e deficiência, desentendimento e ilegalidade. Imigrantes aos montes, filhos de imigrantes e de velhas comunidades originalmente imigrantes que guardam suas línguas e seus costumes intactos. Hackney é uma espécie de peneira de garimpo aonde chegam todos. Os maiores e mais preciosos aparecem na lavagem, brilham foscamente antes de serem polidos, mas já mostram o seu valor. Eles se desprendem dos grãos comuns e, despidos das crostas de sujeira, da religião, da tradição, do anonimato, estão prestes para fazer seus caminhos para os outros bairros. Os artistas com êxito econômico em direção a Islington, Camden ou Hampstead. Esportistas, futebolistas, músicos, bem-sucedidos membros das comunidades étnicas avançando, se espalhando, bem aceitos, bem comprados pela sociedade britânica.

Mas nas ruas, onde se espalham quantidade de Estates com nomes de algum esquecido e importante membro da comunidade, flores ou rios, ficam os outros guardando os seus costumes ferozmente tradicionais, refugiando-se nas lojas de produtos de seu país ou religião: halal ou kosher, turco, vietnamita ou nigeriano. Intolerantemente tolerando o outro, unindo-se somente no Hall do Housing Office, cada um em seu espaço de banco verde, ruminando o seu problema: o cheiro forte da comida do vizinho, o membro da gangue que ameaça ser namorado da filha pura. Os enganados, desiludidos e decepcionados, sentados ali, trazidos pela vaga esperança de alguma ajuda, vieram reclamar do proprietário que tira vantagem daqueles que não sabem seus direitos, ou que sabem, mas não podem lutar pela idade, pela falta de tempo, pelo 'amanhã será melhor' da vida de um drogado.

No hall, com seu teto gigante que dispersa o barulho humano, fica a impressão de calma. Um zunzum pacífico que anestesia os problemas dos outros. Dentro das salas de entrevistas com seus telefones, computadores, alarmes de emergência as vidas das pessoas que passam com as suas questões pessoais, paredes mofadas e filhos com sérios problemas médicos não parecem reais, e mesmo se parecessem, as regras são estritas. O sistema, desenhado de acordo com as mais novas teorias, aprendidas nas mais modernas escolas de business, lida com todos eficientemente, educadamente e dentro do tempo estipulado por eles mesmos. Os clientes, estas pessoas problemáticas, têm o direito a recursos: internos e externos, avaliações e reavaliações, formulários de sugestões e comentários, reclamações e folhetos. Eles têm acesso ao serviço através da net, do telefone ou mensagens de texto. Impecável! Só falta mesmo é a ajuda para solucionar seus problemas. Ajuda essa que só pode vir da mão humana, da vontade política daqueles que não têm mais vontade, ou tempo para perder com os caídos. Principalmente se os caídos (que crime!) nasceram em outras localidades: não estão há cinco anos no bairro, não nasceram no Homerton Hospital, ou nasceram ali, mas ilegalmente, desinglesadamente, ou então são europeus, mas propositalmente deixaram as suas casas, aquilo que era um cortiço, ou mesmo uma favela alugada. Saíram de seus países de nacionalidade para tentar uma vida melhor na segunda capital do capitalismo, com os seus mercados de trabalho aberto e sua necessidade de mão-de-obra imigrante barata. E assim, chegam a Hackney, à 'Áquini'.

E Hackney faz parte do tão almejado primeiro-mundo? Faz e não faz: seu metropolitano não poderia acontecer em nenhum outro lugar, mas é mais uma casa de passagem entre um ponto e outro, a pobreza dentro da riqueza e, em partes, jóias ricas no meio de um mar de pobreza. Os brancos do café da Wilton Way estão ali de propósito. Escolheram este local pela aproximação a uma outra vida e eles também estão em sua casa de passagem. Às vezes, Hackney é só uma janela, um lugar onde alguns, durante algum período de sua vida, podem dar uma espiadela, olhar o grande precipício, a falésia que segue ao lado de nossas vidas, com a sua expansão, seu mar de possibilidades. Alguns seguem beirando a falésia, mas no final se desviam e refazem o caminho à casa. Outros procuram e acham o acesso à praia, descem com cuidado, se deleitam, às vezes sobem, às vezes não, e alguns ainda, uns poucos, não aguentam a tentação e se atiram. Estes caem, se perdem e mancando seguem a Wilton Way até chegarem ao Town Hall, ficam por ali rodeando a vida inteira, fazendo parte daquilo que antes estava tão longe, conversam em voz alta, conversa solta ao vento, para quem quer que queira ouvi-los, portanto que depois consigam mais uma lata de cerveja para anestesiar a dor da caída, do seu passado, de suas vidas.

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