O Valle de los Ingenios se encontra nos arredores da velha cidade de Trinidad de Cuba que se enriqueceu através do cultivo da cana-de-açúcar. Em seu auge, a cidade e seus engenhos tinham uma população de mais de onze mil escravos em relação a uma população total de aproximadamente vinte e oito mil pessoas. Estas são terras devastadas. Os campos antigamente cobertos por florestas, e depois pela cana, agora secos, queimados, acabados. O sol de inverno, fraco, é constante e o céu azul clarinho sinaliza a falta de chuva. Hoje não tem cana, nem nada, mas o fogo comendo o mato ralo e um pouco de gado, leiteiro talvez, porque em Cuba não há muita carne de vaca. A fumaça sobe o céu já esbranquiçado, sem oxigênio, o fogo acalenta cada vez mais a terra já torrada e destrói as poucas possibilidades de qualquer outra vegetação vingar que não um campo pobre, propício a mais fogo. A floresta fora devastada por uma história sangrenta e, ambas, a floresta e a história, quase não deixam rastro. Somente algumas construções abandonadas, vilarejos pobres habitados por negros que por séculos permanecem ali ao redor das velhas plantações de cana-de-açúcar. Terras devastadas, história olvidada.
O museu do trenzinho é um restaurante, o museu, a antiga casa grande da fazenda, agora serve comida criolla - invariavelmente o arroz com feijão em sua versão cubana moros y cristianos, com carne de porco e viandas, isto é, batatas doces, abóboras, inhames, o que tiver. No quintal, um antigo trapiche (moenda) de ferro fabricado em Buffalo, EUA, em volta deste, duas negras esperam os turistas pedirem guarapo (caldo de cana). E só. No museu do rum é a mesma coisa. Os guias explicam: "tudo começou com a chegada da cana-de-açúcar...depois vieram as plantações e os escravos... Mas o que é realmente importante é que no século XIX a produção foi totalmente mecanizada... chegaram as máquinas e as estradas de ferro..." E assim, trezentos anos de história são mastigados e engolidos em um murmuro de segundos. Será vergonha da feia realidade que guarda aquela bebida mais bem refinada que nossa cachaça e que hoje é destilada por uma importante vinícola francesa? Uma história indigna que nem franceses, nem cubanos talvez queiram admitir.
E eu que pensava que a Revolução valorizaria esta história? Um pouco talvez. Em Havana tem a Casa de África em homenagem as relações pós-revolucionárias África–Cuba e também o Museu dos Orixás. A santeria hoje é reconhecida e está
Se em Cuba a liberação do colonialismo e o abolicionismo caminharam juntos, as coisas foram um pouco diferente no Brasil. Em 1888 a Princesa Isabel decretou o fim da escravidão. Até hoje ela está viva em simbolismos culturais, embora a cantada princesa fosse a última governante de todo o continente americano, inteiramente marcado pela escravidão, a assinar a alforria geral.
No Brasil, o Vale do Paraíba valoriza a história do seu jeito. Ali se pode dormir em hotéis fazendas cheirando a madeira de lei encerada, comer com talheres de prata e, durante o festival de inverno, ouvir música clássica nos salões de magníficas propriedades em improvisados "saraus" ou então no centro da histórica Vassouras, capital do Vale do Café. Se pode ouvir histórias glorificando os barões do café, e visitar as lindas casas-grandes em estilo colonial com suas avenidas de palmeiras imperiais cubanas. Talvez, mais brasileiramente visível, (ou quem sabe também brasileiramente invisível), estão os turistas quase todos brancos (como disse Caetano Veloso), atuando em seus eternos papeis de senhores e os trabalhadores negros em seus simétricos e opostos papeis de vassalos. Se Cuba se envergonha ou esquece em vez de afirmar e valorizar, talvez acreditando que o socialismo é capaz de borrar o problema (e a história) racial, no Vale do Café ainda podemos respirar o ar da escravidão tão real quanto a grossa névoa matinal que quase logramos apalpar. Não há como evitar os contrastes múltiplos e constantes. A alguns minutos da industrializada Volta Redonda está Barra do Piraí, bagunçada e suja, meio esquecida, por onde a estrada de ferro ainda passa. Algumas fazendas históricas se encontram na periferia da cidade, isto é, nos bairros e não no campo. Mas as fazendas são o campo e em volta, mais afora, vilarejos, povoados e alguns quilombos de população toda negra (ou quase toda negra). Esquecida e pobre. É claro que certas fazendas tratam melhor a história do negro, valorizam-na um pouco mais. A fazenda Ponte Alta, por exemplo, mantém o prédio da senzala intacto e uma das empregadas negras participa do "Sarau" teatral que conta a história da fazenda e da região. Outras não se envergonham de glorificar o seu passado senhoril, contando as histórias dos homens que vieram se aventurar por estas bandas, que receberam títulos imperiais por causa da riqueza trazida pelo café plantado com mãos escravas.
O Vale do Café é como uma máquina do tempo que revela duas histórias desenvolvidas paralelamente pelo caminho de duas estradas de ferro. Uma que desce o Vale do Paraíba para o Rio de Janeiro, a outra partindo de Santos em direção ao interior paulista. Em seu ciclo de abatimento da mata nativa, plantação e exaustão da terra, e findo o escravagismo, as plantações de café foram se movendo ao longo do Vale finalmente atingindo o oeste do estado de São Paulo. À população negra, os donos deram o direito de ali continuarem ou às vezes deixaram-lhes lotes de terras agora inférteis e esgotados. . A estrada de ferro que inicialmente descera o café agora descia ex-escravos e seus filhos à capital, Rio de Janeiro, em busca de uma vida melhor. Assim os vilarejos, povoados, quilombos e "favelas" foram se formando. Do porto de Santos, que quase não viu crescimento entre os séculos da descoberta até o século XIX, subiram os imigrantes para a renovada atividade cafeeira no oeste, não como escravos, mas como pessoas livres. Trabalho duro, sem dúvida, dos quais muitos fugiam e se arrependiam, mas trabalho remunerado, colonos com outros direitos, outras concessões e em outras terras.
Esta não é uma história desconhecida e, no entanto, quantos brasileiros hoje são capazes de lembrar que o café foi em seu princípio uma cultura escravista? Para muitos esta lavoura é romanticamente associada à idéia do imigrante trabalhador, induzindo levianas comparações entre a suposta "incapacidade" do negro brasileiro com a "produtividade" dos imigrantes não-negros. Pelas marcas que ainda retem, o Vale do Café é iluminador, ali se pode compreender melhor os acontecimentos de mais de um século atrás. A história está tão imprimida na terra como as marcas das erosões que vêm arrebentando o Vale desde os tempos em que suas florestas fecundas foram cortadas para plantar os primeiros cafezais, onde o gado continua a machucar a terra e o café não cresce mais.
Igual que Cuba, a terra devastada, igual que Cuba, o gado, a secura, a névoa grossa da manhã invernal, a terra torrada, a falta de chuva, o céu azul esbranquiçado, a vaga lembrança de uma vegetação exuberante perdida para uma monocultura mal feita, devastadora, igual que Cuba o povo esquecido ao redor das fazendas que deixaram de existir. Cuba mais seca, sua floresta nativa dizimada, arrebentada e arrasada pelas conseqüências climáticas de hoje e de outrora, um país tropical sem frutas. Por outro lado, o sudeste brasileiro precisou que muitas mais florestas fossem cortadas para sentir a secura de um Rio de Janeiro que em julho se iguala em temperatura e teor de umidade à Lisboa. Posso estar sendo um pouco injusta com Cuba, mas se por um lado a herança da escravidão é palpável no Vale do Paraíba, isso não acontece conscientemente, mas pelo contrário, é porque é a conseqüência social de um modelo problemático que nunca foi solucionado e nem mesmo atenuado ou remediado.
Fora a gritante divisão do trabalho, dos opostos riqueza-pobreza, campo-cidade, branco-negro está o próprio festival de inverno do Vale do Café como símbolo maior desta herança. A programação cultural é clássica, européia; eruditas apresentações que condescendem em abrir espaço para o folclore local na noite do último domingo do festival. O que me atraiu ao vale foi ter aprendido sobre o jongo. Ver o jongo no Vale do Café era um dos propósitos de minha viagem. No domingo à noite, todos os grupos da região, inclusive grupos apresentando também folia dos reis e calangos tocavam em diferentes rodas ao mesmo tempo e competiam entre si pelo mesmo espaço no meio da praça. O palco armado para o festival havia sido desmontado, a maioria dos turistas já havia ido embora. Todos os grupos se apresentando juntos - e separadamente. Do jongo, conhecia a sua sutileza, seus cantos codificados, os desafios entre seus membros e o respeito aos mais velhos. Tudo isso perdido em meio a uma babilônia de apresentações, uma cacofonia de tambores e cores e cantos. Casualmente, encontrei uma das organizadoras do festival e perguntei. Porque? Será que não merecem um espaço para serem apreciados individualmente? Talvez não precisem de palco, o pé no chão convinha. Mas todos juntos? Ela simplesmente me respondeu "O jongo é só isso mesmo, não tem nada além disso". Na cidade branca construída pelas mãos dos negros, no Brasil moderno, ainda vemos o erudito para a educada elite e a brincadeira dos outros no final da festa. Quanto à organizadora, porque ela haveria de se importar? Hoje, no Vale do Paraíba, já não há viajantes estrangeiros que se mesmerizam com a “dança primitiva” dos negros.
Julia Felmanas 03/0
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