Sem perceber que era subtraída,
Em tenebrosas transações,
Seus filhos...
Erravam cegos pelo continente,
Levavam pedras feito penitentes,
Erguendo estranhas catedrais.
...E um dia afinal,
Tinham direito a uma alegria fugaz,
Uma ofegante epidemia,
Que se chamava....
(Chico Buarque)
Se esta canção foi escrita para e sobre o nosso carnaval, ela também reflete a história de todo nosso continente americano. Em especial, daqueles lugares onde a população foi subjugada e forçada a trabalhar como escravos, fossem eles índios nativos ou africanos trazidos do além-mar, em plantações ou minas de onde os portugueses e espanhóis esperavam extrair seus próprios El Dorados em prata, ouro ou açúcar.
Se o carnaval, que é também celebrado em outros países católicos europeus, ganhou especial força em nossa América, foi justamente pela importância daqueles poucos dias de “liberdade”, como diz Chico, em que o escravo não só podia parar de trabalhar, mas também praticar suas crenças não-cristãs.
O Carnaval de Oruro não foge às regras. A forma é a mesma que a do nosso carnaval. São grêmios ou congregações que passam o ano ensaiando, fazendo fantasias, criando música para desfilarem nas passarelas nos dias de carnaval. Há várias alas com vários significados, só que em vez das baianas, há as cholitas, por exemplo. Os músicos, bem vestidos em terno e chapéu, à la antiga, elegantes, inspiram tanto respeito quanto os blocos das velhas-guardas das escolas de samba. Ao lado, correndo de um lado ao outro, estão os coordenadores e pessoal de apoio, sérios, também bem-vestidos, assegurando que tudo está indo bem, resolvendo os problemas. No passado, como no Rio, nos dias de carnaval, o povo descia o morro para fazer a festa na cidade criolla, civilizada.
O que muda são as especifidades regionais, culturais. O carnaval aqui, me parece, é todo relacionado à mineração, aos mineiros. Sua história, sua origem, sua santa padroeira, La Virgen del Socavón. A igreja da padroeira é cravada no morro, onde antes jazia uma antiga mina. Em volta, ainda se vê algo de mineração e também as casas mais humildes. Tudo neste carnaval nos remete à Virgem e tudo nela é mineiro. Os carros (literalmente), que abrem cada agremiação, levam a Virgem e são adornados com pratos e outros objetos de estanho. Outro personagem importante é “el Tío” ou o diablo (por tanto, as diabladas), venerado como aquele (antiga divindade) que foi subjugado e substituído pela Virgem (católica). Mas ao mesmo tempo, ele não foi vencido, porque continua sendo venerado pelos mineiros, sua imagem é encontrada em cada mina. Como também se oferece folhas de coca, a ele, à virgem e a não se sabe quem mais. Dentro da igreja, as folhas de coca são oferendadas com respeito e veneração - como se fazia antes com os antigos deuses incas e outros pré-colombianos.
O final da procissão leva à igreja ao pé do morro. Aonde a formalidade da festa citadina acaba e dá lugar a uma celebração mais solta, mais carnavalesca, no sentido etimológico da palavra. No largo da igreja, já em cima das escadarias, os músicos fazem suas últimas apresentações. E na segunda-feira, dia dedicado al Tío, uma passarela de panos tradicionais ornados com peças em estanho é montada para que os carnavalescos passem por dentro. Na frente da porta da igreja também é feito um arco com peças de estanho: pratos, colheres, copos, o que tiver. Nesse dia a celebração é ao contrário – os carnavalescos recebem a benção da virgem na igreja e de lá partem para a praça principal, já não há mais a rota do carnaval a ser seguida.
A igreja em si, que é toda ornada com motifs mineiros e imagens do diabo, tem duas faces. De um lado a igreja formal com seu altar e ao fundo, do lado oposto ao altar, cravada à face rochosa da montanha, está a virgem que, dizem, é a mais cara de toda a Bolívia por suas roupas ornadas em pedras preciosas e semi-preciosas. Aqui, estão as velas, aqui, as pessoas fazem suas homenagens com folhas de coca, aqui, há também figuras do diabo. E estranhamente, ao lado da Virgem, tem a entrada do Museu Mineiro. E tudo isso, é gerenciado pelos padres responsáveis pela igreja. Só posso imaginar, que como na Bahia, os padres temem purificar os rituais para torná-los simplesmente católicos. Preferem conviver com o paganismo, que ter que lidar com a sempre presente ameaça de pessoas como o sociólogo-político Félix Patzi que se declarou praticante de uma antiga religião pré-colombiana. A ameaça da não cristianização, parece, continua tão viva como a 400-500 anos atrás quando os índios eram utilizados para trabalhar nas primeiras minas pós-colombianas e forçados a crer numa religião que não era sua.
Largo da Igreja, Oruro, Carnaval