terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Transporte, morte e política


Transporte na Bolívia é coisa séria. No mês de janeiro morreram mais de 72 pessoas por acidentes de ônibus, desde lá já morreram mais outros. As mortes, nesto caso, envolveram o que, na Bolívia, se chama de Flotas, ou seja, os grandes ônibus inter-departamentais ou internacionais, portanto, aqueles que deveriam ser mais bem controlados, com os melhores motoristas.

Pois aqui, há uma variedade imensa de tipos de ônibus, transporte coletivo, cada um com seu nome e área de atuação - uma certa organização dentro da confusão geral. O que é certo é que, não importando o tipo de transporte, os passageiros estão sempre atentos. Talvez pela natureza aguerrida dos bolivianos do Altiplano, a falta de controle estatal ou simplesmente porque o medo - fundamentado em fatos reais - é tão grande que a ação direta se faz necessária. São eles quem controlam o que acontece, ou pelo menos, vociferam suas posições: “Motorista, ultrapassar assim não dá, não queremos morrer.” “Há uma lista de passageiros, por favor observe a lista, quem não veio, não vai”. “Só cabe vinte um, já tem vinte seis aqui dentro”. Não são atendidos ao todo, mas ajuda a controlar...um pouco.

Quanto àquela ideia do ônibus velhinho todo coloridinho, até agora só vi como transporte urbano que é conhecido por movilidad, que, fora os taxis, ainda não tive o prazer de experimentar. Para viagens inter-urbanas há as flotas que já havia mencionado e que, pelo seu estado, devem ter sido comprados usados do Brasil, Argentina ou qualquer outro lugar. Entre outros, há também os micros, ônibus mais pequenos, mais velhos ainda e um pouco mais lentos. O micro que peguei estava com o vidro quebrado que, com as chuvas que vêm alagando a Bolívia tanto como São Paulo, deixou os assentos todos molhados e mofados. A mistura de cheiro de mofo, sujeira e coca mascada fez brotar em mim todos os meus preconceitos e chiliques de classe média, que se manifestaram basicamente em três palavras causalmente relacionadas: sujeira, nojo e hipocondria. Me sentei rígida as cinco horas de viagem, sem mexer ou tocar em nada, e muito menos pôr minha mão perto de minha boca ou nariz. Daquele banco molhado, imaginava, entrando através da minha roupa, as pulgas, piolhos, bichos transmissores da doença de chagas (na região de Cochabamba um inacreditável número de 70% de mulheres grávidas são detectadas com a doença!) e outros insetos, micróbios e germes em geral. Cada tosse era uma tuberculose, e cada cuspe no chão do carro, um lago de bactérias. Não via a hora de chegar em Cochabamba, passar por uma farmácia, comprar uma daquelas loções anti-piolho e sarna, tomar banho, jogar todas as minhas roupas dentro de um saco plástico fechado, para serem lavados no hotel de luxo que iria ficar em La Paz depois desta experiência tão desagradável.

Não são conhecidos por sua higiene, os índios do Altiplano: roupas sujas, cuspes em qualquer lugar, restos de comida jogados no chão, onde os bebês e todos os outros dormem. Decidi pegar o micro em vez das modernas vans/taxis coletivos - primeira escolha de todos os passageiros a não ser aqueles que estão carregando imensa quantidade de coisas ou estranhos botijões de ferro - porque me disseram que eram mais lentos. Até então, meu medo de morrer num acidente era maior do que minha hipocondria. Depois, juntaram-se os dois. Apesar de ser mais lenta, a viagem não era mais segura. O motorista insistia em ultrapassar grandes filas de caminhões em curvas fechadas ou pontes, sem capacidade para aumentar a velocidade, enquanto os passageiros atrás xingavam alto por causa da falta de prudência. Isso, sem falar do botijão de ferro de sei-lá-o-quê, que estava no chão, ao lado dos meus pés. A cada ultrapassagem mal-calculada, imaginava uma batida contra algum veículo em que o botijão explodia em chamas como o avião da TAM que caiu em Congonhas. O consolo? As belas vistas da subida dos Andes que o micro realmente possibilitava.

A escolha do micro também foi marcada pela minha experiência de ida, numa van moderníssima, bem cuidada, mas cujo motorista se achava primo do Aírton Senna. Descia os 2,000m de altura e de curvas em uma velocidade tal que mais de duas vezes quase bateu, sem falar no episódio da derrapada em que uma quantidade de pó entrou no carro. Pensamos todos que era fumaça – até cheirarmos e constatarmos que realmente era pó. Eu rezava para chegar nos pedaços da estrada em más condições, porque só isso fazia o Aírton baixar a velocidade, e com as chuvas, a estrada estava cheia destes trechos e de desmoronamentos ou “dezumbes” como diz a população local.

Minha ida e volta à Copacabana, no Lago Titicaca, foi regida pela ameaça e subsequente efetivação de greves e bloqueios de estrada. A razão? Um sensato decreto do governo nacional reforçando a regulamentação e monitoramento dos motoristas e companhias de transporte. O tal decreto prevê que os donos de veículos dirigidos por pessoas bêbadas e que causarem acidentes, não poderão utilizar o veículo como meio de transporte por 1 ano, em uma primeira infração, e definitivamente em uma segunda infração. O problema está que em relação ao trasporte intra-departamental, que é normalmente feito em micros, vans e outros pequenos veículos, o dono ou é o motorista ou tem só aquele veículo. A perda do uso do mesmo implicaria na falência da pequena empresa, e na incapacidade de trazer sustento para suas famílias. Mas a pergunta ainda fica: Que tal não dirigirem bêbados? O que me espanta é a coragem destes motoristas de saírem às ruas, de alguma maneira justificando a possibilidade do motorista estar bêbado, para reclamarem seus direitos de classe.

Assim, na política. No meio desta confusão toda, o partido do governo, o MAS – Movimiento al Socialismo, está dividido. Um de seus mais importantes membros, Félix Patzi, ex-ministro da educação do primeiro governo Morales, foi pego dirigindo bêbado. O problema era que Patzi, político extremamente popular com os campesinos e certos movimentos sociais, era candidato para o partido nas próximas eleições. Ele postulava à posição de governador do departamento de La Paz. A reação de Morales e de outros altos dirigentes do MAS foi a de pedir a Patzi que não se candidatasse, o que ele se negou a fazer. Estava cumprindo com as penas jurídica e comunitária – a qual envolveu fazer um número de tijolos de barro para a sua comunidade. Já havia pedido desculpas ao presidente, disse ele, e portanto, não via porque não poderia se candidatar. Aparentemente, disse, não era tanto por si, estaria contente de voltar a dar aulas na universidade - Patzi, intelectual aymara e militante do MAS, é professor de sociologia, mas a população o conclamava. A briga interna está acontecendo às claras. Como político e professor de sociologia, Patzi deveria dar o primeiro exemplo para sua sociedade, mas em um país onde é mais ou menos aceitável um motorista profissional dirigir bêbado, o que se espera de um motorista particular?

Ponto de Partida de Movilidades - El Alto

Um comentário:

  1. Julia, liguei ontem para a casa do Ian e da Ana e falei com Phil, que comentou sobre seu blog. Li as entradas, que massa! vc escreve muito bem e seu estilo e muito divertido! Dá para imaginar as cenas... Bom, vou continuar seguindo as suas aventuras quando tiver um tempinho, no mais um abraço grande para vc e Teresa.
    Graça

    ResponderExcluir